Introdução
Há 1 ano nascia Deus Ateu. O site, ainda tomando forma e se conhecendo à luz das demandas e urgências do seu tempo, buscava em suas editorias uma matéria que fosse possível registrar a identidade que ilustraria nosso compromisso com a provocação e com a partilha de um saber acessível aos leitores.
No meu caso, a dádiva que possibilitou esse marco identitário na editoria de psicanálise foi o “sim” da professora Ana Suy, em meados de agosto do ano passado. A partir dessa primeira entrevista – “Por que é tão difícil amar?” -, a editoria psicanalítica alavancou em credibilidade e popularidade para com seu público, reafirmando nosso fôlego por investigar as intuições do contemporâneo.
Com isso, em celebração ao nosso aniversário editorial para nos ajudar a pensar esse cenário estranho em que vivemos atualmente, convidamos a psicanalista, professora e escritora Ana Suy para discorrer sobre os efeitos psíquicos que a conjuntura pandêmica da Covid-19 tem exercido sobretudo nas áreas do amor e da análise pessoal.
As perguntas abaixo foram feitas e respondidas por e-mail:
1. Ana, estendo em nome do Deus Ateu, o imensurável agradecimento por uma vez mais você ter cedido de seu tempo e inteligência para falar sobre assuntos que nossos leitores certamente não se cansam de pensar/ experienciar.
Mediante uma pesquisa rápida, descobri o que intuía, que a procura pelo divórcio aumentou durante a pandemia. O que eu não sabia, é que cerca de 70% desses pedidos são iniciados pelas mulheres. Ana, esse dado te surpreende? Para além da obviedade que o isolamento social obrigou casais a coexistirem a maior parte do tempo juntos, por que isso seria fundamentalmente um dos principais motivos que levam a separação?
Henrique, para mim, é uma alegria ser entrevistada por você de modo escrito, pela terceira vez. E uma honra participar dessa edição comemorativa do Deus ateu! Desde o primeiro convite vocês sempre foram muito atenciosos e é realmente interessante dialogar com quem acompanha mesmo o meu trabalho. Eu sempre digo que tenho uma fantasia de que ninguém lê o que escrevo, o que me permite continuar publicando algumas coisas do que escrevo. Mas, quando leio as perguntas de vocês, sinto que essa fantasia titubeia. No entanto, ainda assim, ou melhor dizendo, justamente por isso, me sinto causada por vocês.
Pois bem, o amor precisa de espaço para existir, visto que é uma tentativa de união. Não há tentativa possível quando há êxito. Mas, para além disso, acho importante considerar alguns pontos:
1) Ao procurarmos “casamentos” na pandemia no Google o que aparece são os adiamentos das festas.
2) Ao procurarmos “divórcios” na pandemia o que aparece são plataformas que desburocratizam e tornam possíveis processos essencialmente de modo online.
Podemos pensar, a partir desses pontos, que o amor pode esperar, mas o desamor, não. O amor, aliás, se faz de esperas, se faz de falta. O “desamor” é urgente, nos convoca a acabar com tudo o quanto antes.
Mas há outro ponto para além disso que acho importante destacar: a pandemia do coronavírus parece ter alterado a nossa relação com o tempo. Já nos referimos assim à nossa vida: “na vida normal” x “na vida pandêmica”, “antigamente” x “hoje em dia”… A pandemia dividiu a nossa vida em um antes e um depois, de um modo irremediável. Assim, coisas que levariam muito tempo para acontecer, aconteceram muito mais rapidamente. Foi nossa relação com a tecnologia na universidade e no trabalho clínico (falo da minha realidade, é claro) e foi (e segue sendo) assim com nossos relacionamentos. Casais que provavelmente levariam muitos anos para se separar, em um tempo muito mais curto, descobriram o relacionamento insuportável. Por outro lado, vários casais que talvez levassem mais tempo para “juntar as escovas de dentes”, o fizeram. Sem cerimônias e formalizações documentais, muitas vezes, devido à dificuldade com as festas – então eles não estão nas estatísticas.
Para além disso, ainda, se o papel das mulheres em nossa sociedade estava sendo revisitado a passos mais lentos, a coisa se tornou muito mais urgente com a incidência da pandemia. Ficou escancarado o quanto homens e mulheres trabalham fora de casa (agora dentro) igualmente, de maneira geral – mas em relação aos cuidados com a casa e com os filhos há uma disparidade que já não é mais tolerada por muitas mulheres. Isso sem falar na violência doméstica. Então, longe de ser um pesar pensar no número de divórcios durante a pandemia, há muito o que encontrar de vivificante aí.
2. Em um dos seus escritos recentes, até de forma brilhantemente chistosa, você escreve que “o amor não é aquilo que transforma um dia útil normal em um dia especial, mesmo em tempo tão difíceis, mesmo em meio a uma horrorosa pandemia. O nome disse é sexta feira. O amor é outra coisa”. Bom, seguindo a linha da primeira pergunta e atiçado de curiosidade, o que seria essa “outra coisa”?
A “outra coisa” é aquela que vive sempre escapando. A gente ama porque tenta apreender algo do amor, esse fanfarrão que vive escapulindo de nós. Mas se não escapulisse não poderíamos amar, pois o amor é o exercício de correr atrás do amor, de dizer o amor, de apreender o amor. Tarefa possível à condição de ser fracassada. O amor sempre fracassa, porque seu triunfo mora num certo fracasso.
3. Estabelecendo um outro recorte, gostaria que falássemos sobre os atendimentos online. Para os que tinham resistência nessa modalidade – eu por excelência -, parece ser inconfundível que mesmo quando a situação nacional se estabilizar, digo voltarmos a uma normalidade presencial, a análise virtual permanecerá em muitos casos. Ana, você analisa que alguns dos conceitos elementares da psicanálise como transferência, livre associação, silêncio do analista, tiveram alguma alteração devido a esse “novo” formato?
Da minha experiência, em relação a isso, posso dizer que nem tanta coisa assim mudou, a não ser que ficou mais claro a radicalidade de certos conceitos. A transferência e o desejo do analista, por exemplo, nunca foram tão claros para mim. No início da pandemia eu recebia muitos e-mails e mensagens nas redes sociais de psicólogos e psicanalistas angustiados com o formato online, muitos contando que propunham a modalidade de atendimento aos pacientes/analisandos e eles não topavam. Para os que tive a oportunidade de abrir um diálogo (eu já não consigo responder à maioria das mensagens que recebo), coloquei em questão tópicos em torno do desejo do analista. Muitos de nós tínhamos muitos pés atrás (alguns ainda têm) com os atendimentos online. Mas não penso que esses pés atrás todos sejam possíveis de serem colocados na conta de uma resistência, preconceito ou ignorância, antes da pandemia. Penso que, substancialmente, essa oposição era menos uma resistência e mais uma prudência. Quem “oferecia” esses atendimentos online, o fazia com um discurso de certa facilidade. “Faça online, é mais fácil, mais barato”.
Eu sigo me opondo a esse tipo de oferta. Acontece que o atendimento online tornou a coisa mais “difícil”, se é que eu posso dizer isso. Os analisantes e os analistas se depararam com um certo desconforto. E a análise é isso, um encontro com o desconforto, com o novo – e não com uma satisfação já conhecida, que não pode ser alterada. Assim, em seguida, muitas análises que acompanho deram um salto! Eu me surpreendi, ao reler os textos de Freud sobre os “escritos técnicos”, o quanto ele já previu que o tratamento psicanalítico se dá pela via da análise da transferência e da resistência, e não necessariamente dos encontros presenciais físicos. Ora, Freud trocou e aprendeu muito sobre o inconsciente, a transferência e a psicanálise a partir de cartas, não é? Já estava marcado para ele, desde o nascimento da psicanálise, que o processo analítico se dá substancialmente pela análise da transferência e da resistência. Aquilo que seve para ocultar a resistência e a transferência é antipsicanalítico, seja a hipnose, seja a oferta de atendimento online como uma facilidade. Mas nesse contexto, vimos que não se trata exatamente de tornar fácil, mas de tornar possível. Isso faz toda a diferença. Uma análise precisa ser, sobretudo, possível.
Agora, quanto aos rumos que isso deve tomar, eu acho que ainda não temos como saber. Estamos no olho do furacão, é preciso saber esperar, recolher os efeitos, ressignificar. A psicanálise nos ensina a não entender rápido demais.
4. Para finalizar, de uma forma livre, gostaria que comentasse algumas falas que percorrem nosso meio social/midiático como “a pandemia irá mudar nossa forma de lidar com x ou y”, ou até mesmo que “teríamos que aprender com esse momento difícil para evoluir”. Qual seu pensamento a respeito desses discursos? Em sua leitura, acredita ser possível medir os impactos pós pandêmicos no psiquismo brasileiro?
Eu sou freudiana, então tenho dificuldade com essa questão de considerar a evolução, o desenvolvimento, o progresso no sentido higiênico da coisa. Há pouco mais de cem anos Freud teorizou a “pulsão de morte”, logo após a primeira guerra mundial e logo após a epidemia de gripe espanhola, na qual perdeu uma filha que estava grávida e tinha apenas 26 anos, Sophie. Sinto que estamos muito próximos de Freud quando ele escreveu “Além do princípio do prazer” (1920), que fez nascer o conceito de pulsão de morte. Lacan, depois, disse que toda pulsão é pulsão de morte. Estamos querendo sempre aniquilar a falta, matar o desejo. Me parece uma visão muito ingênua achar que saímos melhor de uma tragédia como a que estamos vivendo com essa pandemia. Mas também não se trata de achar que não aprenderemos nada com isso, é claro que não. Só que estamos imersos nessa vibe de coachização, onde somos convocados a ver o lado bom de tudo. Eu acho que certas coisas não têm lado bom, tem coisas que são apenas terríveis.
É claro que aprendemos algo com isso, mas daí dizer que há tragédias que valem a pena, me cai como um sadismo imenso. Acho que ninguém sairá ileso desses tempos assombrosos que estamos vivendo. Ficaremos recolhendo os efeitos do que estamos vivendo por muito tempo, talvez até o final de nossas existências. Há quem sairá mais marcado e quem sairá menos marcado, mas ileso não ficará ninguém. É parte da vida humana saber que vai morrer, no entanto, Freud nos adverte de que não há inscrição para a morte em nosso psiquismo. A gente sabe que vai morrer, mas é um saber virtual, quando nos deparamos com a morte é sempre um susto, uma ferida no narcisismo. Se o outro morre eu posso morrer também. Mas diante de tantas mortes, estamos assustados, angustiados, um tanto até mesmo anestesiados…quem não está é preocupante. Não por acaso há tanto negacionismo, encontrar com aquilo do qual não queremos saber, de modo tão rotineiro assim não é fácil, melhor não saber disso – o que não quer dizer que não se saiba mesmo. A teoria freudiana nos ensina isso. Não é porque o “eu” não saiba, que o inconsciente deixe de saber. O inconsciente é um saber, ainda que não saibamos que os sabemos, é o que nos ensina Freud. Vamos avaliar os impactos do que sabemos e do que ainda não sabemos saber – isso vai durar muito, precisamos de fôlego.
,Sobre a autora:
Ana Suy é Psicanalista, escritora, professora da graduação de Psicologia da Puc-Pr. Doutoranda em pesquisa e clínica pela Uerj, mestre em Psicologia Clínica pela UFPR. Autora de “Amor, desejo e psicanálise” (Juruá, 2015), “Não pise no meu vazio” e “As cabanas que o amor faz em nós” (Patuá, 2017 e 2019).