“Luto e Melancolia” é um daqueles textos de Freud que não acaba no ponto final. As palavras continuam a se demorar e serem gastas com o viver cotidiano, são reticências que provocam o mais delicioso tormento de se questionar sobre uma sensação que faz morada uma vez que se instala, a tristeza.
Na música, João Gilberto, o gênio brasileiro, descobriu o mistério das cousas sem fim, transformando-as em melodia para nós e cantando: tristeza não tem fim, felicidade sim. No cinema foi o diretor sueco Ingmar Bergman que conseguiu traduzir tal sentimento melancólico, como por exemplo, em “Morangos Silvestres”, em que o Dr. Isak Borg, ao atravessar um olhar atencioso para sua vida de honras e excelências acadêmicas, percebe que a punição do existir, da velhice, é a solidão.
Percebo que a tristeza é um fenômeno presente em todas as esferas humanas. Mesmo em tempos maníacos como os nossos, em que se faz um combate a toda e qualquer ausência de felicidade, se produz cursos e discursos sobre uma autoestima elevada (com o mito do amor próprio), e com os recursos tecnológicos disponíveis, alimentam imagens espetaculares nas redes sociais de extrema alegria e perfeição (seja lá o que esse sintoma significar).
Não importa todos os investimentos da civilização para se distanciar da dor e do sofrimento, estamos predestinados a lidar com aquilo que Freud sensível e brilhantemente cunhou em seu texto de “o respeito à realidade”. O respeito ao Real (fazendo a ponte com o real lacaniano) se inaugura com a aceitação da impossibilidade de simbolizar a angústia de uma perda e do impossível de saber o que se perdeu.
Mesmo no luto, onde se tem uma ideia do que se perdeu um ente querido, uma pessoa amada ou um ideal, todas essas três representações indicam para nós mais significantes do que significados. Até porque, o que é um Pai? O que foi uma esposa na vida de alguém? O que sente um apátrida? Tenho a impressão que o luto imbeciliza o desejo, isto é, o coloca em uma posição de limite e irracionalidade: não posso desejar aquilo que não consigo espelhar.
A melancolia, por sua vez, toma carona na lógica do luto em razão de também retratar a inviabilidade de sustentar o dissabor de uma tristeza sem rosto. Freud ressalta isso ao escrever:
“Em outros casos ainda, achamos que é preciso manter a hipótese de tal perda, mas não podemos discernir claramente o que se perdeu, e é lícito supor que tampouco o doente pode ver conscientemente o que perdeu. Esse caso poderia apresentar-se também quando a perda que ocasionou a melancolia é conhecida do doente, na medida em que ele sabe quem, mas não sabe o que perdeu nesse alguém.”
O mais curioso ao estudar a melancolia é, além da opacidade de saber o que se perdeu, a condição inconsciente da dor. O melancólico é aquele que sofre de algo ou alguém sem saber do que sofre exatamente. O sofrimento melancólico representa o divórcio do sentido com a emoção.
Aquilo que atravessa o sujeito, apenas ao sujeito pertence. O estranho familiar, o desconhecido comum em cada Je/Eu, indica que o concreto das nossas experiências afetivas, o sensível que nos alcança, é completamente indiferente a nós.
O processo melancólico do amor talvez seja um dos mais interessantes. Freud vai apontar que, após a perda ou rompimento com o objeto amoroso escolhido, o procedimento natural era retirar a libido enviada a esse objeto e direcioná-la para algum outro, visando dar continuidade e forma às demandas pulsionais exigidas.
Estar Degas, Melancolia (1860)
Todavia, na investigação melancólica, percebe-se que o indivíduo não consegue (ou não quer) emprestar sua energia sexual para se alienar em outro objeto. Em termos freudianos, o Eu vai estabelecer uma identificação com o objeto abandonado.
Isso é fascinante. Por que ficamos presos a imagens perdidas? Ou até mesmo, por que umas imagens (pessoas, afetos) se fixam em nosso imaginário e outras não? Para além da habilidade oracular de responder o que é particular de cada um, sabemos que não aceitamos perder aquilo que mais desejamos manter em nós.
Entre perdas e dores, o luto como uma tristeza definida e nomeável, e a melancolia como uma tristeza indefinida e inominável, tenho a impressão que sem essa condição natural – preconizada desde o nosso nascimento – a vida seria apenas a consumação de uma passagem inócua e ilusória, já que o sofrimento pode ser o verdadeiro.
Finalizo com a poesia “Dialética” de Vinicius de Moraes, que em alguns poucos versos conseguiu traduzir alguns milênios de melancolia:
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste…
Montevidéu, 1962.