A aurora de nosso ser – Entrevista com Ana Suy

Por uma coincidência quase que religiosa, trouxemos uma matéria sobre vida e nascimento no dia dos finados. De antemão, prestamos nossas condolências e respeito a todos aqueles que perderam ou relembram a memória de seus entes queridos. Para tanto, o tema escolhido para imagem e título dessa entrevista ser uma aurora, ilustra o alento e a meditação sobre a condição humana que oferecemos com essa matéria.

Particularmente gosto muito do olhar do professor espanhol Jorge Larrosa sobre a experiência: “a experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente, então, se converte em canto”. (LARROSA,2020).

Saibam que entrevistar Ana Suy é uma experiência. Uma experiência em que a troca de palavras e saberes se traduzem em tremores e cantos retumbantes. Por isso nós, do Deus Ateu, compartilhamos com todos os nossos leitores essa inteligente e generosa entrevista a respeito do universo da mulher, do vazio e do desejo humano. Boa leitura!

As perguntas abaixo foram feitas e respondidas por e-mail:

Querida professora Ana Suy, mais uma vez o site Deus Ateu agradece imensamente sua presença. Ficamos felizes em emprestar nosso espaço para ser ocupado por uma escritora com uma obra potente e tão poética quanto a sua. No mais, gostaria que hoje nos debruçássemos a respeito de seu último livro “A Corda que Sai do Útero” (Editora Patuá, 2020), em especial, quatro poesias que me encantaram e chamaram muito minha atenção.

HP: A primeira delas se encontra logo no início do livro, nomeada “Direito Fundamental” (pág.25). Nela você escreve: “Todas as mães precisam do direito fundamental de serem mulheres também”. Me soou incrível como algo aparentemente óbvio, na verdade, traduziu um sofrimento quotidiano na vida de tantas mulheres. Ana, por que a mãe não pode ser uma mulher?

AS: Olá, Henrique! Agradeço imensamente o espaço e o interesse de vocês pelo meu trabalho, mais uma vez.

É difícil analisar o próprio poema, na verdade, diria que não é possível. Um poema se escreve porque se escreve, sem muitas explicações.

Portanto, farei um esforço de me deslocar de mim, como se não fosse eu quem tivesse escrito (e de certo modo um poema não pode ser escrito pelo eu mesmo), para tecer alguns comentários. Vou me ater, portanto, ao seu recorte e à sua pergunta.

A mãe não pode ser uma mulher porque é uma mãe. Parece uma resposta tola, mas é que é simplesmente assim. Mãe é mãe. Não é assim que a gente diz? É isso. Acontece que uma mulher, dentre suas várias facetas, pode acontecer que uma delas seja uma mãe. Há outras. No entanto, ali onde ela é uma mulher, ela não é uma mãe. Não sou uma estudiosa de Winnicott, mas talvez seja a isso que ele tenha se referido com o conceito de “mãe suficientemente boa”. É preciso que a mãe não seja tão mãe assim, que um ponto de sua feminilidade não seja tocado pela maternidade, que haja uma mãe na mulher, e não uma mulher na mãe.

Vou confessar uma coisa, cometi um ato falho. Ao escrever “mãe suficientemente boa” escrevi “mãe suficientemente de boa”. É exatamente isso, uma mãe só pode ficar “de boa” quando também é uma mulher. O inconsciente é surpreendente.

HP: “Útero é pra te dar força” (título “A Professora de Ballet”, pág. 30). Essa frase é absolutamente soberana para elucidar, o que em minha leitura no percurso psicanalítico compreende, que a mulher possui uma solidez em sua estrutura psíquica em relação ao homem. Poderia amplificar seus pensamentos sobre a força uterina para nós? Acrescentar mais alguns versos para essa dança…

AS: Os homens tendem a crer demais no falo, isso os fragiliza. Em aparência, sustentam um narcisismo exuberante, como se tivessem uma autoestima inabalável. No entanto, o que aprendi com a psicanálise, tanto na minha própria análise, quanto nos estudos teóricos e na minha clínica, é que essa altivez é uma defesa.

Gosto muito de um comentário que a Doltó (em seu livro “Sexualidade feminina”) faz a respeito do narcisismo masculino, dizendo que o dilema do narcisismo é mais marcante na infância dos meninos do que na das meninas. Segundo ela, o narcisismo do menino é apreendido “na necessidade de defender a eretilidade do seu corpo”, levando-os a serem mais sensíveis do que as meninas. Segundo a teoria do complexo de Édipo, a menina desenvolve dois tipos de amor muito intensos: com a mãe e com o pai. Já os meninos, aprofundam seu amor de modo mais livre com a mãe, mas com o pai as coisas costumam ficar mais tensas. Não por acaso os carinhos entre as meninas são muito mais possíveis no campo da amizade do que entre os meninos que, com frequência, precisam “brigar” para tocar uns aos outros. Isso leva as mulheres a uma abertura ao campo do amor e do sexo mais ampla do que a dos homens, o que, por consequência, as coloca com menos defesas em relação às diversidades na maneira de gozar.

Nesses tempos de pandemia está circulando um meme que diz algo sobre não se saber o porquê de medir a temperatura dos homens para entrar nos lugares, pois não se vê homens doentes perambularem por aí. É claro que esse é um estereótipo, cheio de exceções. Mas em geral, os homens têm uma relação com sua posição fálica que os deixa vulnerável em demasia diante de qualquer ameaça de perda, isso pela atualização da ameaça da castração, que os atormenta.

Diferentemente, as mulheres precisam sustentar o corpo todo como não-todo fálico. Assim, não costumam se abalar tanto com adoecimentos mais simples. A posição de falta com a qual se encontram desde muito pequenas, as leva a elaborações mais requintadas do que a ancoragem no falo recortado num pedaço do corpo.

Um útero é um órgão que é meio mágico, a priori pode até mesmo trazer gente para o mundo. No entanto, trata-se de um vazio, de uma bolsa. Gosto muito daquele filme da Mary Poppins em que, de sua bolsa, ela retira de tudo, como se sua bolsa fosse infinita. Me parece que é por aí, que da assunção do vazio podem sair muitas e muitas coisas, inclusive filhos.

HP: Na poesia “Vazio” (pág.35), a professora aborda um dos temas que mais me causam vivacidade que é exatamente o tal “vazio” que é deixado por algo ou alguém que se foi. Sendo uma das principais demandas em uma análise, questiono: por que costuma se enxergar a inauguração de um novo vazio não como um alívio (possibilidade de criar e inventar nesse espaço ocioso), mas como um processo penoso e doloroso de angústia?

AS: É preciso que o vazio nos coloque a trabalho. É muito potente quando podemos dar um contorno a ele e transformá-lo em falta, em desejo, até mesmo em amor. Mas é do sofrimento neurótico fixar-se num vazio vazio. Em meu livro “Não pise no meu vazio” (ed. Juruá, 2017), há um poema que faz uma pergunta: “Há algo mais triste do que ficar vazio de vazios?” Pois veja, o vazio é algo que muito me interessa.

Para Freud e Lacan o desejo não tem objeto que o satisfaça na realidade. O desejo é desejo de desejar, aponta Lacan. Dito de outro modo, o desejo não cessa de apontar para um vazio. Mas se acontece de o desejo cessar, se ele encontra um objeto que o satisfaça, o que temos é a angústia. Lacan afirma que a angústia não é de que algo falte, mas de que falte a falta. É da estrutura do ser falante, portanto, que algo nos falte, e que essa falta se relance como objeto causa de desejo. Se desejamos algo, então, é porque esse algo nos falta. Só se pode desejar a partir de uma falta. A falta nos leva ao desejo e o desejo nos leva à falta. Há algo que leva.

Quando a falta falta, algo deixa de levar. O sujeito paralisa, se angustia. Oscar Wilde diz que quando os deuses querem nos castigar, eles atendem aos nossos desejos. A falta da falta nos angustia.

Somos amantes da falta, mesmo que não saibamos disso. Quando estamos muito colados à pessoa do nosso amor, pedimos um afastamento, dizendo coisas tais como: “preciso sentir sua falta”. É próprio do ser falante incluir a falta. Um trabalho de análise nos leva a esse ponto, a poder sair da posição de lamúria diante da castração à posição de alívio. É uma alegria que algo nos falte e que tenhamos alegria de viver para desejar!

HP: Para finalizar, seria uma violência de minha parte, e certamente nossos leitores não me perdoariam, se não lhe fizesse uma pergunta direta sobre o amor, rs. Nos versos “Doçura” (pág.58), está escrito: “Como é doce e paradoxal esperar por alguém que já está aqui!”. Ana, preciso que você nos mostre caminhos para esse paradoxo. Como posso esperar aquilo que já tenho? É possível desejar o que se tem?

AS: Achei uma graça essa pergunta! Precisarei recorrer à poetisa em mim que escreveu esse poema para comentar algo, rs. Escrevi esse verso quando estava grávida. As pessoas me diziam sobre esperar minha filha e eu achava curioso que estivesse numa espera por ela, que estava dentro de mim. Nesse tempo, pensei muito sobre essas distâncias, sobre perto e longe. Perto, quando perto demais, é longe.

Isso tem a ver com a pergunta anterior. Somos amantes da falta. Perto, sem falta, é longe.

É preciso que uma criança saia do corpo de sua mãe para que sua mãe comece a conhecê-la.

Isso serve para todos os tipos de amores, o amor precisa da falta, precisa de uma certa distância para encontrar alegria e dignidade.

Quando duas pessoas se sobrepõem e parecem virar uma só, é porque ao menos uma delas está sendo subjetivamente sufocada. Não por acaso, quando há uma euforia no casal, que está demasiadamente junto, algum dos dois, ou mesmo os dois, diz(em) coisas do tipo “estou com saudades de mim”.

Lacan afirma que no amor, entre um e outro há um muro. Podemos pensar que o muro separa ou que o muro aproxima. Mas há um muro. A importância dele é tamanha que Lacan fez um neologismo, “amuro”.

Agradecemos por ler a nossa entrevista.

,Sobre a autora:

Ana Suy é Psicanalista, escritora, professora da graduação de Psicologia da Puc-Pr. Doutoranda em pesquisa e clínica pela Uerj, mestre em Psicologia Clínica pela UFPR. Autora de “Amor, desejo e psicanálise” (Juruá, 2015), “Não pise no meu vazio” e “As cabanas que o amor faz em nós” (Patuá, 2017 e 2019).

Publicado originalmente no site deusateu.com.br

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