Eu sou uma casa. Está escuro em mim. Meu consciente é uma luz solitária. Uma vela ao vento. Ela cintila. Às vezes aqui, às vezes acolá. Todo o resto está nas sombras. Todo o resto está no inconsciente. Mas ainda estão lá. Os outros cômodos. Nichos, corredores, escadas e portas. O tempo todo. E tudo que vive e perambula dentro de nós está presente. Trabalha e vive. Dentro da casa que sou. Instinto, desejos e tabus. Pensamentos proibidos. Desejos proibidos. Memórias que não queremos ver sob a luz. Que afastamos da luz. Elas dançam na nossa escuridão. Nos atormentam e nos atiçam. Elas assombram e sussurram. Elas nos assustam. Nos adoecem. Nos tornam histéricos.

O trecho acima pertence a aclamada série com produção austríaca da plataforma norte americana Netflix “Freud”, que atraiu em pouquíssimo tempo diversos espectadores e críticos devido ao caráter peculiar de como representou a vida do maior pensador do século XX, o Dr. Sigmund Freud.

Para além dos ensaios e textos já publicados sobre o seriado, onde dissecam as verdades e invenções ao longo dos episódios, me permito analisar o alcance e a relevância da passagem acima para a compreensão do infamiliar na obra freudiana e no espaço cotidiano.

O discurso ficcional da série dialoga intimamente com que a maior historiadora da psicanálise e biografa do Dr. Freud, Elizabeth Roudinesco, escreveu sobre ele: “Judeu sem Deus, puritano emancipado capaz de controlar suas pulsões e criticar os danos do puritanismo, Freud se descreve como um rebelde metódico, desde a infância apaixonado pelos mistérios e extravagâncias da sexualidade humana” (ROUDINESCO, 2014, pág.30).

A aparente contradição entre a rebeldia e o método ilustram de forma pertinente o desentendimento massivo em relação a figura do criador da psicanálise seja em seu tempo, ou no nosso. Como aponta a psicanalista: “Freud via-se como herdeiro de Goethe. Tinha a missão de fazer existir o que o discurso da razão procurava mascarar: o lado escuro da humanidade, o que há nela de diabólico, em suma, o recalcado, o desconhecido, a estranheza, o irracional” (ROUDINESCO, 2014, pág.46).

O estranho, o inassimilável, aquilo que nos escapa e atravessa, marca a cicatriz do inconsciente em nós. A dimensão daquilo que não se pode compreender, apenas observar, se situa marginalmente na história do coração humano.

Essa pretensa incompreensibilidade do funcionamento das relações humanas, na qualidade do que constitui o mistério da alteridade, isto é, o enigma de um outro que não é eu, se sedimentou com o advento da palavra no universo simbólico e imaginário da linguagem.

O poeta e diplomata mexicano Octavio Paz foi preciso ao atestar que: “a história do homem poderia se reduzir à história das relações entre as palavras e o pensamento” (PAZ, 1982, pág.35). Nessa dialética, a palavra foi o acidente histórico que permitiu que o sensível se tornasse concreto no entre de dois seres falantes.

A palavra compõe, opõe, constrói, destrói os sentidos e gestos humanos. Como salienta o psicanalista freudiano Jacques Lacan, em seu Seminário 3 sobre um garotinho que conheceu: “Lembro-me do garotinho que, quando recebia um tapa, perguntava – É um carinho ou um palmada? Se lhe dissessem que era uma palmada, ele chorava, isso fazia parte das convenções, da regra do momento, e, se fosse um carinho, ficava encantado” (LACAN, 1988, pág.15).

Esse exemplo é extremamente rico para ilustrar o alcance do uso da palavra para rechear nossas emoções que, como lembra o filosofo Gilles Deleuze: “A emoção não diz eu. Estamos fora de nós mesmos. A emoção não é da ordem do eu, mas do evento” (HUBERMAN, 2016, pág. 29). Assim sendo, percebemos a distância entre o afeto – o que sinto – e a representação – imagem do que parece ser – através da palavra manifestada.

A palavra é a matéria prima do analista. O inconsciente fala mediante a impossibilidade do discurso humano. É no tropeçar, no não saber que se fala o que se fala, que se diz o que se queria falar. E, para além, nos coloca diante do incomensurável, das sensações inebriantes, das coisas mudas, do impossível de ser simbolizado.

Por fim, o seriado “Freud” vale a diversão. A leitura e o conhecimento da obra freudiana, uma obrigação. A narrativa de um homem querendo se afirmar em uma sociedade retrograda e a beira do colapso do nazifascismo europeu, com suas tramas à lá Sherlock Holmes e envolvimentos eróticos com seus pares, em nenhum momento diminui o que foi Herr Professor na história, apenas entrega o que uma cultura de massa demanda.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Livros Cotovia, 1999.

HUBERMAN, Georges Didi. Que Emoção! Que Emoção? Editora 34, 2016.

LACAN, Jacques. O Seminário 3: As Psicoses. Zahar, 1988.

PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Editora Nova Fronteira, 1982.

ROUDINESCO, Elizabeth. Sigmund Freud: Na sua época e em nosso tempo. Zahar, 2014.

Publicado originalmente no site deusateu.com.br

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Henrique Paes

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