Um dos principais desafios da realidade contemporânea é o esvaziamento de si ao se relacionar com o outro. É cada vez mais notável a incapacidade de seres humanos de se aproximarem pela sua diferença, estarem abertos à contradição e escutar não só aquele que pensa diferente, mas diferente em sua natureza.
Indo na contramão desse fenômeno que evoca a exclusão da alteridade, o site Deus Ateu respira e inspira-se na idolatria da dúvida e no contato com o estranho. Dessa forma, pensamos em uma conversa entre profissionais de psicologia e psicanálise, aspirando identificar as possíveis aproximações e distâncias dessas duas áreas.
Nossa intenção com essa matéria, além de esclarecer conceitos fundamentais para o senso comum, destina também em proporcionar aos nossos leitores questionamentos e provocações sobre essas duas vertentes, visando sempre enriquecer suas inteligências e contribuir para o debate público e digital.
Para esse desafio instigante, convidamos o professor e psicanalista Thiago Russo e a psicóloga e psicanalista Juliana Guerdão. Ambos, com uma riqueza de repertório impressionante, utilizaram de sua avidez pelo conhecimento para nos proporcionar uma conversa agradável e interminável sobre duas das principais ferramentas de saúde mental do nosso tempo.
A entrevista fora realizada via o aplicativo WhatsApp.
HP – Primeiramente, gostaria de agradecer muitíssimo a presença de ambos para esse debate. Seus nomes foram a primeira opção para discutir esse assunto. Quero me deleitar nesse início para a área que particularmente tenho maior curiosidade, a da psicologia. Juliana, em seu entendimento, o que é a psicologia?
JG – Sobre a questão lançada, primeiramente, a psicologia não é UMA só, existem psicologias e, dentro desse contexto, possibilidades de olhar o ser humano por diferentes ângulos. A obra “Teorias da Personalidade” de James Fadiman e Robert Frager ilustra bem essa questão, falando dos principais teóricos, bem como suas respectivas teorias. No meu entender, acredito que a psicologia se aproxime principalmente das teorias que não são da psicodinâmica, ou seja, não leva em conta o papel do ”inconsciente”, ela se mostra mais na posição do discurso do mestre, como vai falar a teoria do Lacan. A psicologia propõe oferecer ajuda, para o alívio do sofrimento, de uma posição de saber “eu sei como você pode aliviar seu sofrimento”; mas ainda assim é uma excelente porta de entrada para a percepção de si e do outro e para o autoconhecimento – existem diversas técnicas para isso. A psicologia tem seu lugar distinto da psicanálise, já olhando por essa perspectiva. Certa vez, inclusive, em contato com uma profissional da TCC (Terapia Cognitivo Comportamental), relatou que quando seus pacientes já resolveram questões pontuais, mas tem desejo de continuar a terapia, ela faz o encaminhamento para a análise. Sendo assim, vejo a análise para poucos que se dispõem a pagar o preço de um mergulho mais profundo, não em termos de valor de cifra, mas de aposta numa caminhada (des)conhecida em direção a si mesmo.
HP – Agora, curiosas duas coisas que comenta: primeiro, as teorias que não levam em conta o inconsciente e, segundo, a frase “eu sei como aliviar seu sofrimento”. Thiago, o que a psicanálise diria desses comentários? Ela se aproxima ou se distância desses olhares?
TR – A psicanálise lida com sofrimento, mal-estar e sintomas, assim como a psicologia o faz. Entretanto há uma diferença na abordagem como bem mencionou a Juliana. Eu diria que, assim como a psicologia, a psicanálise também atua deslocando, transformando ou atenuando o sintoma e o mal-estar através da fala, tendo um efeito catártico. Todavia aí reside uma grande diferença no modo como nós, psicanalistas, encaramos o sintoma: não é algo que a gente tira da vida da pessoa. Ele tem diversas funções estruturantes. O Lacan, mencionado agora há pouco, dizia que o sintoma tem uma estrutura de metáfora e, como tal, torna-se algo indissociável do que somos e de como agimos. Neste sentido, a psicanálise é um método de investigação do funcionamento mental, uma ferramenta de interpretação sobre si mesmo, ao mesmo tempo em que também se debruça sobre os fatores que nos marcam. Em certo sentido ela busca esclarecer ou jogar luz à complexidade ou contradição em relação ao que somos e aquilo que gostaríamos de ser. Está além da perspectiva terapêutica, é uma ferramenta de compreensão da dinâmica social, de sua estruturação, e suas contradições dentro do movimento histórico.
JG – Exato. Mesmo por que o sofrimento é inerente a estar vivo e, se relembrarmos Clarice quando ela fala que não se sabe em que esse sujeito se apoia, se retiramos algo desse sujeito, que seja sua estrutura, poderá ruir o edifício todo. Sobre a questão de não levar o papel do inconsciente em conta, a abordagem psicológica da “Análise do Comportamento”, por exemplo, desconsidera a existência do inconsciente, tendo um viés bem científico, pois analisa somente o comportamento observável.
HP – Provocações… Provocações! Para a psicologia então, o sintoma é um problema inquestionável e deve ser tratado e eliminado. Para a psicanálise não é algo que deva ser retirado com veemência, como se o psicanalista tivesse um olhar para além do sofrimento do paciente.
JG – Mas aí sabemos que a voz do inconsciente não descansa enquanto não é escutada e o sujeito pode até “melhorar”, mas logo surgem outras questões que depois se percebe uma relação com essa voz, esse sintoma. Não diria que a psicologia tenta eliminar, mas tirar a força desse sintoma na vida do sujeito, ao passo que pode ir em direção de apagar o que seria o mais singular deste, um risco que se corre. Ir pela via do controle do comportamento.
HP – O Thiago nos trouxe um acréscimo interessante à discussão: a psicanálise como uma ferramenta de compreensão da dinâmica social. Como essas duas ferramentas de saúde mental, vou resumir assim, observam o social? Interferem? Criticam? Se posicionam? Como vocês avaliariam?
TR – Ambas têm muito a acrescentar. No campo da psicanálise, teóricos importantes têm se utilizado da teoria psicanalítica para tentar compreender, por exemplo, a psique política de países em que um dos sistemas econômicos mais antidemocráticos – leia-se o capitalismo – marca presença. Slavoj Zizek e Fredric Jameson figuram entre os mais atuantes nessa área. Zygmunt Bauman e Christopher Lasch também são figuras significativas que buscaram elucidar patologias ligadas a tal sistema. As Síndrome de Burnout, crises frequentes de pânico, paranoia, e narcisismo desenfreado têm aparecido significativamente como queixas dentro e fora dos consultórios em tempos nos quais a racionalidade neoliberal triunfa, criando novas raízes ao sofrimento psíquico.
JG – Sim, ambas tem muito a acrescentar, mas é fundamental marcar essa diferença de que a Psicologia vai pelo viés científico, de certa padronização em determinadas atividades; e a Psicanálise é uma ética, é a responsabilização do sujeito, a emancipação do sujeito.
HP – Ciência versus Ética… que briga, hein?!
TR – Exatamente. Neste sentido é importante frisar que, enquanto tal, a psicanálise vem se abrindo a diferentes áreas do conhecimento (através da assim chamada inter/transdisciplinaridade) e vem sofrendo constantes reformulações. Há diversas críticas, por exemplo, com relação à teoria freudiana e o contexto que a marcou quando foi escrita. Para alguns, determinados conceitos parecem ser datados e/ou retrógrados, mas a psicanálise se renova constantemente, especialmente por ter profissionais oriundos de diversificadas áreas do conhecimento.
JG – Exatamente, a Psicanálise abraça quem tem desejo de estudar e se aprofundar! Acredito que isso é uma riqueza que a psicanálise proporciona.
HP – Agora essa conversa, bate-papo, precisa esquentar… Quero aquecer um pouco. Analistas, me contem, como fica a questão do desejo? Na psicologia, ele é tratável? Na psicanálise, incentivado? Comentem.
JG – Excelente questão! Então, eu diria que ir em busca do desejo não é algo que prima pelo “equilíbrio” dos sujeitos, por que vem do singular de cada um. E se partirmos do princípio de que a proposta da Psicologia é aliviar o sofrimento, buscar equilíbrio e amenizar conflitos, talvez não olhe para esse aspecto importantíssimo na Psicanálise. São propostas distintas de trabalho, sendo o tema desejo próprio da Psicanálise.
HP – Buscar o equilíbrio… amenizar conflitos… Para quê? Onde está a agressão, a violência, a loucura… a Perversão!
JG – E todas essas questões que você muito bem citou continuam aí, em cada um de nós. Mas é desagradável de olhar. De se perceber assim. Existe uma aparente glamourização da terapia, que é uma delícia, que o único sentimento possível pós-sessão seria o alívio.
HP – Fico me perguntando por que é tão desagradável…
JG – Se nós pensarmos em eliminar aquilo que incomoda, que faz questão, tenho a impressão de que a psicanálise vai olhar para questões que a psicologia não olha tão de perto e acaba não percebendo a angústia como um combustível poderoso que é para movimento, para mudança, para seguir em direção ao desejo e todas essas coisas perturbam o “equilíbrio da força”; e a psicologia aparentemente tenta fazer com que o caminho seja mais suave.
TR – Olha, a questão do desejo é um conceito bastante desenvolvido por Freud desde “A Interpretação dos Sonhos”, de 1900, em que o axioma se traduz como uma espécie de retorno a traços de satisfação. O sonho pode ser entendido, a grosso modo, como uma realização alucinada de um desejo.
O curioso é que este mesmo desejo aparece de diversas maneiras: condensado, deslocado, “truncado” e o desejo é enxergado no conteúdo latente. Há uma pergunta bastante provocadora, que também dá título a um dos livros mais conhecidos do lacaniano Jorge Forbes: “Você quer o que você deseja?”, o que nos faz pensar nessa faceta do desejo enquanto mola propulsora do sujeito.
HP – É curioso… duas áreas que lidam com pessoas, com nomes próximos, mas tão diferentes. Me parece então que a Psicologia esteja mais atrelada à civilização, à norma, ao bem, ao equilíbrio. E a Psicanálise antes de querer entender ou adequar o desejo, o questiona… Hum…
JG – Quando a Psicanálise escuta e pergunta, o que você pode fazer a partir disso?
HP – Parece que implica uma responsabilidade no sujeito. Me lembro de sua fala no início ao colocar que o psicólogo ocupa o lugar do mestre, isto é, ocupa o lugar daquele que detém um saber, logo, tem maior “poder”, “controle” sobre as vias do sujeito…
JG – Então, se fôssemos fazer uma comparação, veja o que você pensa sobre isso, Thiago. A Psicologia seria o Ocidente e a Psicanálise, o Oriente. No sentido o Ocidente tem uma relação com o mal e com aquilo que incomoda procurando não olhar muito, mas o Orienta olha e entende que tudo tem os dois lados, acolhendo o bem e o mal, o agradável e o desagradável e assim por diante. Como lidar com algo que não me proponho a entrar em contato?
TR – Eu diria que a psicanálise está MUITO interessada nas perguntas. Acredito que elevar a qualidade das perguntas, sem necessariamente encontrar uma fórmula para resolvê-las, é onde reside o triunfo da psicanálise. Sim, concordo sim. Há uma anedota, alguns historiógrafos a refutam dizendo ser mentira (incluindo a Élisabeth Roudinesco, uma das maiores e mais competentes da área), de que quando Freud embarcara nos Estados Unidos, ele se virou para Jung e disse ao pai da psicologia analítica: “Estamos trazendo a peste aos Estados Unidos”. Mesmo que seja ficcional, esta anedota nos serve para ilustrar a força que a teoria psicanalítica possui.
HP – O apontamento de Juliana a respeito da Psicologia ser o “Ocidente” e a Psicanálise o “Oriente” é bem curioso. Me estenderia no assunto por observar que o Ocidente devido a predominância da religião cristã, facilitou esse olhar maniqueísta e condenatório ao desejo. Enquanto que a Psicanálise, em uma vertente lacaniana em especial, possui um olhar mais complexo – que aceita a contradição – e que busca o vazio do sujeito, como inúmeras teorias orientais.
TR – Acho muito válido. Soma-se a isto a perspectiva de como tais culturas enxergam a função da terapia, ou de como equilibrar a saúde mental, por exemplo. Enquanto práticas espiritualistas ou mais lançadas ao lado filosófico/existencialista predominam no oriente, tentando buscar as raízes de algumas questões, o ocidente enfatiza mais abordagens imediatistas que foquem na solução. Daí a explosão de coachings, psicoterapias breves, PNL etc., todos sintomas de um sistema em que o indivíduo não tem tempo (ou interesse?) em se aprofundar em algumas questões. Tais abordagens são expressão direta do lema do capital de que “Time is money”.
JG – Exatamente! O imediatismo. A busca incessante pela perfeição, pela melhor versão de si, certa obsessão por explicar tudo, ver sentido em tudo, não dá espaço para a falta, o vazio, para a pausa.
HP – Agora, vocês ficam nos seduzindo com conhecimento e eu gosto do concreto. Para encerramos essa breve fala, algo que sempre me chamou a atenção e com certeza é um assunto do senso comum: existe fim da terapia (psicologia)? Existe fim da análise (psicanálise)? Como alguém “chega” nesse lugar… Revelem para nós.
JG – Então acredito que seja complicado colocar em uma categoria só a psicologia, pois ela se apresenta de muitas formas, dependendo do teórico. Existem as idas e vindas da terapia, baseada na demanda do momento, em um sofrimento que esteja marcando uma presença muito forte. Não podemos deixar de considerar que deve ser desejo do sujeito permanecer na análise ou na terapia.
Também existe a perspectiva da fase da vida, orientação vocacional para escolhas no final da adolescência, transição de carreira, que tem essa tendência de ser por um determinado período de tempo.
TR – Exato. Esta questão tem atormentado tanto analisandos quanto analistas, e ela foi abordada pelo próprio Freud em “Análise terminável e interminável (1937)”. Pode-se dizer que, por um lado não, ela é interminável porque o inconsciente continua lá e lá sempre estará. Enquanto seres humanos, levamos nossa vida adiante constantemente criando/recriando/ativando/desativando sintomas, paixões, fantasias, transferências etc. Portanto por conta de elementos como esses, sempre teremos nossos desejos e o assim chamado “freio civilizacional” que nos imporá algum tipo de restrição a esses mecanismos supracitados. Além disso, o mergulho na psicanálise é um reflexo do processo de cuidar de si, de descobrir e se redescobrir, o que acontece durante toda a vida do indivíduo. Entretanto, pode-se dizer que a análise termina, sim, por condições internas: a dissolução de elementos que tornam a análise possível é o fator principal. Uma fantasia construída, uma decepção para consigo mesmo ou para com o analista, suposições de saber (definição que o próprio Lacan dá à transferência). Há casos também em que o analisando sente-se com plenitude, satisfação ou mesmo acredita possuir um senso de autonomia. É aí que o analisando sente que a análise terminou.
HP – Juliana, quero seu olhar sobre.
JG – É o sujeito barrado. Somos divididos, pode tanto ser terminável quanto interminável, como brilhantemente coloca o Freud. O Lacan já fala o oposto sobre o encerramento da análise, de que o analista seja responsável pela alta e passa, inclusive, essa questão para as mãos do analisante em que existe o dispositivo do passe. Se ele pensa ter concluído sua análise, produz o documento que é avaliado por outros analistas e estes atestam ou não que esses elementos que se procuram no documento e evidenciam ou não esse passe, e, mesmo assim, se diz ao sujeito que volte para ver os nossos queridos restos, não é? Como se diz “será que acabou mesmo?” Eterno retorno a Freud! Rs.
HP – Parece que ao chegarmos ao fim, chegamos ao início. Me lembro da orientação de Lacan aos seus alunos: Vocês se preocupem em serem lacanianos, eu sou freudiano!
JG – Quanto mais eu leio Lacan, mais eu amo Freud.
HP – Quero agradecer imensamente pela contribuição!
JG – Eu quero agradecer o convite! Amei!
TR – Eu também…. Adorei nossa conversa!
,Sobre os entrevistados:
Juliana Guerdão é Psicóloga formada pela Universidade de Taubaté (UNITAU). Atua em consultório particular de forma presencial e online. Está no Instagram como @psicanalisenovamente. Membro fundador do Coletivo Sincronistas arte feita por mulheres, do Vale do Paraíba.
Thiago Russo é psicanalista freudiano, tradutor, mestre e doutor em Literatura pela USP, tendo realizado parte de sua pesquisa na University of Louisville, no Kentucky (Estados Unidos). Suas pesquisas focam em teatro norte-americano e suas relações com política e história, sob o prisma do materialismo histórico e dialético. Thiago é autor e foi professor na USP (em cursos de extensão e de línguas) e trabalhou também no Centro Universitário Belas Artes, no curso de Relações Internacionais. Atualmente dedica-se a seu projeto de pós-doutorado.