Narcisismo, Desejo e Falta – Como lidar? Entrevista com Daniel Omar Perez

Poucas vezes na vida encontramos pessoas que conseguem adquirir um repertório tão vasto sobre determinados fenômenos e possuem a habilidade de transmiti-los com tamanha clareza e objetividade. Penso que esses indivíduos conservam um lugar especial de nossa atenção pela intimidade e expressividade que compartilham seu saber para nós.

O professor Daniel Omar Perez atende seguramente a esse perfil. É dispensável dedicar palavras sobre sua trajetória e importância na psicanálise latino-americana como um todo. Docente, doutor, mentor e educador, dissemina através de suas redes e do ensino acadêmico uma psicanálise pluridisciplinar, interessada em investigar as subjetividades e a imaterialidade da experiência humana.

Hoje, zelosamente dedica a nós algumas de suas reflexões a respeito de assuntos que versam sobre o cotidiano de cada um: a análise e a cultura; castração e dor; desejo e falta; inconsciente e angústia. Por certo, uma entrevista enriquecedora e que despertará em cada leitor o entusiasmo pelo conhecer psicanalítico.

Entrevista feita via e-mail.

HP: Professor Daniel, estamos extremamente honrados e felizes com sua presença no Deus Ateu. Acompanho seus textos acadêmicos e digitais, tenho segurança em avaliar que o senhor hoje é um dos profissionais mais compromissados com a causa analítica, sabendo transmiti-la de forma inteligente e acessível.

Isto posto, gostaria de iniciar essa entrevista relembrando uma de suas últimas postagens nas redes sociais, onde o senhor escreveu: “A psicanálise não fortalece seu ego nem te torna independente, autossuficiente e confiante. Para isso você faz um curso de autoajuda e se olha no espelho de Narciso”. Que provocação, professor! Se a psicanálise não visa fortalecer o ego, para se adequar às narrativas do contemporâneo de sucesso e “amor próprio”, o que quer a psicanálise? Quais os impactos que a análise pode causar na vida de uma pessoa?

DOP: Agradeço muito a gentileza do convite e as palavras da sua mensagem. Responder à pergunta “O que quer a psicanálise?” é já um desafio. Diria que desde sua invenção, a psicanálise se apresenta como uma técnica que procura tratar casos de histeria. Mais tarde Freud avançou na abordagem de casos de neuroses obsessivas e, com o desenvolvimento da teoria e da prática clínica, começou a lidar com diferentes modos de mal-estar psíquico. Além disso, a psicanálise, como disse Freud, tem múltiplos interesses. Elementos do dispositivo conceitual psicanalítico é usado na pedagogia, na filosofia, na política, na economia, entre outras áreas.

Portanto não sei se é exatamente isso o que a psicanálise quer, mas é isso o que produz: uma prática clínica e um dispositivo conceitual que acolhe experiências de mal-estar e de desejo na vida individual e coletiva, na cultura e na política, nas artes e nas ciências. Com relação à segunda pergunta: “Quais os impactos que a análise pode causar na vida de uma pessoa?” Isso vai depender do caso. Não é possível dar uma resposta sem acabar falando uma generalidade. O que podemos dizer é que a psicanálise põe em questão o desejo e a sua interdição tanto individual e coletivamente, se propõe colocar em pauta a possibilidade à experiência de desejo e repressão.

HP: Um dos temas de maior acesso ao cotidiano da psicanálise é o tema da neurose. Facilmente ouvimos, quando escutamos uma aula ou palestra, imagino que o professor escute em demasia, que “fulano é neurótico” ou “para de neurose”. Tenho entendimento que essas expressões estão um pouco distantes da elaboração psicanalítica a respeito. De uma forma limpa e inteligente, o senhor consegue nos descrever o que é uma neurose? E, em seguida, se é possível viver sem neuroses?

DOP: Vou tentar dar uma resposta possível. Espero que ajude em algo. As neuroses são modos de lidar com o que Freud chamou de “castração”. Os seres humanos somos interditados quanto à descarga da energia em objetos de satisfação. Têm objetos que são permitidos e objetos que são proibidos enquanto objetos de satisfação da energia que cada um dos corpos procura escoar.

Essa interdição é vivida de diferentes modos pelos seres humanos, em alguns casos pode provocar um grande mal-estar, dor, sofrimento na forma de inibições, sintomas (psíquicos ou somáticos) ou angústias. Quando esse mal-estar, provocado pela impossibilidade de lidar satisfatoriamente na psique com a energia corporal, se torna um impedimento no desenvolvimento da vida cotidiana, então a psicanálise se oferece como uma prática que permita elaborar a posição do sujeito em relação ao modo em que tem de lidar com o desejo e a sua interdição. Aqui tento, então, responder à segunda pergunta: é possível viver sem neuroses? Assim, responderia com Epicuro: é possível diminuir a dor.

HP: Seguindo com seus escritos, outro texto seu muito chamou minha atenção: “A transmissão em psicanálise não pode ser senão da falta e do reconhecimento da falta enquanto tal.” Talvez o significante “falta” seja uma das palavras mais presentes no vocabulário do meio social e dos nossos analisandos. Dito isso, pergunto: o professor consegue mapear para nós as origens da falta no imaginário humano? Que falta é essa que é tão difícil de reconhecer?

DOP: “Que falta é essa?” Podemos dizer que a falta não é algo nem de algo específico como um objeto em particular. O médico e psicanalista Jacques Lacan trabalhou essa noção demoradamente tanto em seus escritos quanto em seu ensino. Em “O seminário 2” nos diz que se trata da falta de ser do sujeito e que isso estaria no cerne da experiência analítica. A própria condição do sujeito como efeito é não ser completo, não ser totalizante, não ser fechado, em suma, não ser.

Mas essa incompletude, essa impossibilidade de fechamento e totalização pode ser difícil de suportar na vida cotidiana e procuramos objetos (ou pessoas) que nos completem. Isto significa, como fala Lacan em “O seminário 8”, que a falta é o que ocasiona o desejo. Assim, a falta designa o desejo no sujeito e também a falta do significante da completude no Outro. Por isso tanto o sujeito quanto o outro são barrados, interditados, não completos, não totalizantes. A vida humana se desenvolve, muitas vezes, na tentativa de preenchimento da falta.

HP: Para finalizar, apreciaria se nos desdobrássemos sobre o inconsciente. Sei que o senhor escreveu um livro com o título “O Inconsciente: onde mora o desejo”. Nos conte, professor, qual desejo é habitável no inconsciente?

DOP: Agradeço muito essa pergunta porque me permite falar de um livro que escrevi e que me permitiu avançar na apresentação das condições epistemológicas a partir das quais Freud constrói a psicanálise. O livro busca mostrar que a psicanálise começa com o conceito do “Inconsciente”. “O inconsciente” é o nome de um tipo de causalidade psíquica que permite acolher fenômenos da vida cotidiana que não estão determinados apenas pela causalidade natural das reações químicas, nem pela causalidade da representação mental consciente como são os lapsos, os atos falhos, a troca de nomes, o esquecimento reiterado de nomes, palavras ou objetos, os sonhos, o engraçado dos chistes, os comportamentos compulsivos, as angústias, as fobias, entre outros.

Todos esses elementos dizem respeito daquilo que se reprime na psique em função do mandato super-egoico ou o mandato social, em função dos usos e costumes que barram o escoamento da energia corporal. O desejo que mora lá é a falta enquanto tal e o modo em que lidamos pode provocar, como diz anteriormente, inibições, sintomas e angústias. O livro busca dar conta disso introdutoriamente.

HP: Agradeço imensamente pela partilha do saber!

Agradecemos por ler a nossa entrevista.

 

,Sobre o entrevistado:

Daniel Omar Perez é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pesquisador PQ 1D no CNPQ com pesquisas sobre o sujeito e a linguagem a partir de Kant. Em 2012 realizou um estágio de pós-doutorado na Bonn Universität (Alemanha) onde desenvolveu parte do projeto sobre antropologia em Kant e avançou na tradução das “Reflexões de Antropologia” de Kant iniciada em 2008. No ano de 2007 realizou outro estágio de pós-doutorado na Michigan State University (EEUU) com o apoio da Capes onde trabalho na antropologia pragmática de Kant e na organização do livro “Kant in Brazil” com Frederick Rauscher. Concluiu o doutorado em 2002 com a tese “Kant e o problema da significação” e o mestrado em 1996 com a dissertação “Significação dos conceitos e solubilidade dos problemas (acerca do esquematismo transcendental na Crítica da razão pura de Immanuel Kant como procedimento de doação de sentido aos conceitos)”, ambas na Universidade Estadual de Campinas (Brasil) com o apoio da Capes. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosário (Argentina). Publicou artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros s sobre filosofia e psicanálise. Entre suas publicações podemos contar Kant e o problema da significação (Editora Champagnat, 2008); O Inconsciente: onde mora o desejo (Civilização Brasileira, 2012); Ontologia sem espelhos. Ensaio sobre a realidade (CRV, 2014), Sentimentos em conflito (Editora PHI, 2019), O pêndulo de Epicuro (CRV, 2019, publicado também na França pela Editora Harmattan). Orientou numerosas pesquisas no nível de iniciação científica, trabalho de conclusão de curso de graduação, especialização, mestrado e doutorado na área de filosofia e de psicanálise. É membro da Sociedade Kant Brasileira. Também tem formação como psicanalista a partir de 1990 na Argentina.

Publicado originalmente no site deusateu.com.br

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Henrique Paes

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