Por que é difícil amar? – Entrevista com Ana Suy

O título da matéria não poderia ser outro. Como num encontro de inconscientes, as belíssimas respostas dessa entrevista apontam mais para dúvidas do que certezas, caro leitor.

As provocações e reflexões abaixo desafiam um olhar raso sobre o tema do amor. Essa palavra, que para uns significa sentimento, conceito, vida, morte, sentido ou miséria. Esse significante, amor, atravessa a história de todos os sujeitos, quer queiramos ou não.

É quase como se o amor fosse uma violência. Antes de poder decidir sobre tê-lo ou sê-lo para alguém, o sujeito ama. Até porque, antes mesmo de existirmos enquanto ser, já somos amados nos discursos e fantasias daqueles que nos geram.

Para além dos sentidos subjetivos atribuídos, nos resta a infinita inquietação: por que é difícil amar? Abaixo, a tentativa de responder o extraordinário.

As perguntas abaixo foram feitas e respondidas por e-mail:

HP: Professora Ana Suy, primeiramente, muitíssimo obrigado pela partilha de seu tempo e inteligência para conosco do Deus Ateu, e parabéns pelo seu trabalho acadêmico e digital nas redes que possui. Estou certo que teus escritos democratizam a transmissão da psicanálise para todos os públicos sem perder em qualidade.

Um dos temas que mais nos interessa é a questão do amor. É certo que essa palavra – enquanto significante – é inesgotável em seu sentido e forma. Em um dos seus textos recentes você escreveu “Amor, sobretudo é, um exercício de sustentar o amor – não apesar das ambivalências, mas por causa delas.” Poderia se demorar mais nessa frase para nós? O amor enquanto exercício de seu próprio sustento, é o seu próprio fim?

AS: Olá, Henrique!

Agradeço pelo convite para essa entrevista, bem como pelas perguntas tão cuidadosas e afinadas com meu trabalho.

Quando escrevi do amor como uma sustentação das ambivalências, pensei especialmente na antítese que Freud propôs entre amor e ódio, no texto “Instinto e suas vicissitudes”. Nesse texto, Freud ensina que o ódio não é o oposto do amor, mas que o amor é um desdobramento possível para o ódio, que, por uma questão estrutural, não nos livra dele. Podemos extrair do texto freudiano que onde tem ódio nem sempre tem amor, mas que onde tem amor tem sempre uma cota de ódio. E é uma cota que é disfarçada pelo amor, mas não aniquilada por ele. Assim, quando o amor titubeia, o ódio aparece, dando a impressão de que o amor se transformou em ódio, quando na verdade, ele sempre esteve lá – mas estávamos prestando atenção no amor.

Se a gente não quer saber nada do ódio, se a gente pensa que o amor está em excluir as diferenças, em amar o outro o tempo todo, em se agradar com tudo que ele faz e diz, corre o risco de ler as ambivalências do campo do amor como falta de amor. E a fantasia neurótica, que é uma fantasia de completude, trabalha para isso, para a aniquilação da diferença, para o não querer saber daquilo que nos aborrece no outro. O amor é resultado de uma força constante para fazer de dois um, sem jamais conseguir, porque conseguindo, paradoxalmente o que acontece é a morte do amor. É a tensão entre amor e ódio que faz o amor existir.

Voltando à sua pergunta, o amor é seu próprio fim, no sentido de ser sua finalidade. Para que serve o amor? Para amar. Quanto mais coisas a gente espera do amor, mais se desaponta com ele, porque a gente espera coisas demais do amor. Amar dá muito trabalho, mas na fantasia neurótica o amor tende a aparecer como se fosse resolver algo. Não resolve e dá mais trabalho. Mas dá brilho à vida.

HP: Seguindo ainda nos teus escritos, tive cuidado ao observar que escreveu “Amar é também elaborar lutos”. Certamente não é uma opinião popular no nosso tempo. Professora, como um relacionamento amoroso, de duas ou mais pessoas, lida com a instância de sua própria finitude? Pode a melancolia – segundo a tradição freudiana do conceito -, ser um sintoma desse amor?

AS: Quando uma pessoa se apaixona, ela coloca ali no outro muito do seu próprio ideal. O amor, para Freud, está profundamente articulado ao narcisismo. No texto “Introdução ao narcisismo” Freud escreve que há duas maneiras de amar, a narcísica e a anaclítica. Na primeira, amo no outro aquilo que eu fui, que eu sou ou que eu queria ser. Na segunda, amo no outro a relação que ele parece ter com seu narcisismo – ou seja, amo o narcisismo do outro porque gostaria de ter aquele narcisismo e tive que renunciar a ele. De um modo ou de outro, o amor é uma restituição narcísica na teoria freudiana. Mas como sustentar uma relação onde só há “eu”? Não dá. Não é uma relação. O apaixonamento tem essa possibilidade, de que um se coloque como objeto para o outro e de que o outro se coloque como objeto para um, e ali nada falte. O próprio Freud também escreve em “O mal-estar na civilização” que no auge do sentimento de amor as fronteiras entre o eu e o objeto tendem a desaparecer. É como se o amor, nesse estado, fosse uma espécie de alvará para a loucura. Nesse ápice do amor, que podemos ler como sendo o apaixonamento, duas pessoas se bastam, elas não precisam de mais nada e nem ninguém no mundo além de uma da outra.

Na prática, no entanto, isso seria angustiante, porque seria a falta da falta. Lacan inclui o desejo no amor, fazendo furo à fantasia de completude. Para Lacan a angústia aparece quando a falta falta. Então, é frequente que quando dois amantes, no estado de apaixonamento começam a perder aquele excesso de sintonia, eles incluam a vontade de sentir falta do outro, de querer que o outro sinta a falta dele também. E é aí que as coisas caminham para o amor se consolidar um pouco, no encontro com o Outro que não existe. É comum em análise as pessoas dizerem que se decepcionaram com seus parceiros amorosos, mas ao aprofundar a temática, se darem conta de que aqueles traços que as levaram à decepção, já estavam presentes desde o início. Penso que a gente se apaixona pela fantasia amorosa, mas ama aquele que aparece quando a fantasia vai caindo. É um ponto no outro que é estranho a nós que nos interessa. O que Freud chamou de “infamiliar”, para mim, é isso. Algo no outro que nos diz respeito, não como algo que reconhecemos, mas como um mistério que nos interessa.

Agora, com relação à melancolia, no sentido freudiano, ela acontece quando o objeto não pode ser perdido. Se não há como perder ideal, não há amor digno, eu penso. Porque se ficamos apegados ao objeto do ideal, recusamos o objeto da realidade. E o amor não se faz só com fantasia, se faz principalmente com arroz, feijão e boletos. Se a gente quer só a fantasia e recusa o cotidiano, não consegue sustentar o amor. Fica preso a um ideal e o amor morre para mantê-lo.

HP: Recentemente li uma entrevista com o excelente Jacques Alain Miller que se intitulava “o amor e o impossível”. Nela, o escritor provoca ao dizer que “Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem.” Qual seu olhar diante dessa afirmação? É sabido que o homem, em sua maioria de estrutura obsessiva, possui extrema dificuldade para se abrir ao outro com medo de ser invadido. Se, além de ter medo, amar feminiza, como podemos pensar a forma de como o homem ama dentro desse universo amoroso?

AS: Eu não diria que os homens são em sua maioria neuróticos obsessivos, não sei se podemos afirmar isso, mas acho que o clichê do homem que temos em nossa cultura, se assemelha bastante ao clichê da neurose obsessiva. No entanto, as defesas obsessivas abarcam nossa sociedade cada vez mais. Estamos todos nos defendendo obsessivamente do amor, no sentido de que tentamos aniquilar o desejo, não queremos saber da falta, mantendo uma fantasia de que as coisas estão sob um suposto controle.

Para amar é preciso desejar, e só podemos desejar o que não temos. Amar, então, é uma posição de falta. O amante crê que o amado tem algo que lhe interessa. Por isso, quando não se pode reconhecer-se como faltante, não se pode sustentar o amor. A posição feminina é a posição onde se pode amar, então, onde posso saber da minha falta e dizê-la ao outro. Porque o amor tem disso, não basta amar em silêncio, em paralisia, é preciso dizê-lo, é preciso movimentar-se. Por isso amar é tão trabalhoso. Não tem quase nada de confortável no amor, embora ele dê tanta cor à vida e amparo à existência.

HP: Em minha clínica, escuto demasiadamente, acredito que você também, a reclamação constante da falta de ser amado (ou de se sentir amado) pelo outro da forma que gostaria (narcísica). Tenho para mim que o amor é um fenômeno de alteridade – outra opinião impopular rs -. Professora, é possível, em sua concepção, amar alguém pela e em sua diferença?

AS: A meu ver, só podemos amar alguém pela diferença. Amar o igual é de um narcisismo intolerável. Narciso morreu afogado em sua própria imagem. Precisamos da diferença, somos ávidos por ela! É que quando ela aparece, nos coloca a trabalho e nem sempre estamos dispostos a pagar o preço. É o que a neurose faz, não se cansa de colocar pedras no caminho do amor. Amar não é fácil, mas a fantasia neurótica leva as pessoas a pensarem que se é difícil, é porque não é amor. Ledo engano. Um trabalho de análise nos possibilita trocar pedras por perdas. E aí a gente descobre que se pode perder ideal, pode amar. Mas “poder amar” não está no campo das garantias capitalistas. Pode ser que sim e pode ser que não. Cada vez estamos dispostos a apostar menos e as coisas de amor só podem acontecer quando topamos perder. Não dá pra topar perder à condição de que se ganhe algo. Pode ser que tenham apenas perdas. Sem polianices. É assim, a vida não é justa. Existem várias contingências para o amor. Pode ser que aconteça ou não. Mas um trabalho de análise nos deixa mais atentos para não recuar ali onde a coisa pode ser que funcione e para tocar o barco ali onde a coisa claramente não anda. Sem análise, pode-se levar muitos anos ou toda uma vida para descobrir coisas que são claras. É assim que a neurose, com Tânatos, reina. Um trabalho de análise nos libera para perder em ideal e ganhar em vida.

HP: Excelente, professora. Muito obrigado pelas provocadoras e amabilíssimas palavras!

Um breve vocabulário para ajudar a situar o leitor sobre alguns conceitos abordados na entrevista:

Fantasia: Corresponde aqui a toda e qualquer idealização que se faz de algo ou alguém, que não condiz com a realidade material (dos fatos).

Outro: Conceito lacaniano que se refere ao lugar do significante, isto é, uma coisa que significa uma outra coisa. Logo, o Outro é um significante porque jamais é o mesmo, nunca apresenta uma identidade definitiva: é pura alteridade.

Infamiliar: Termo freudiano para intitular aquilo que deveria permanecer oculto na vida do sujeito e que, quando aparece, causa estranheza.

Tânatos: É o nome em grego que a psicanálise freudiana se utilizou para cunhar o termo pulsão de morte. A pulsão de morte é aquela energia que o indivíduo dispende visando o retorno ao estado inorgânico (o fim de sua própria vida).

Ao leitor, obrigado por ler a nossa entrevista.

,Sobre a autora:

Ana Suy é Psicanalista, escritora, professora da graduação de Psicologia da Puc-Pr. Doutoranda em pesquisa e clínica pela Uerj, mestre em Psicologia Clínica pela UFPR. Autora de “Amor, desejo e psicanálise” (Juruá, 2015), “Não pise no meu vazio” e “As cabanas que o amor faz em nós” (Patuá, 2017 e 2019).

Publicado originalmente no site deusateu.com.br

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Henrique Paes

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